25 de maio de 2013

Do deleite vouyerístico ao pânico moral: um comentário sobre o homoerotismo no filme “Finalmente 18”

Texto de Márcio Zamboni


Neste último sábado (18/05) cheguei por volta das 19:00 horas na rodoviária de Salvador e, diante do trânsito caótico da Avenida Tancredo Neves e do movimento intenso no terminal urbano de ônibus, decidi assistir algum filme no Shopping Iguatemi (no qual chegamos por uma longa passarela), deixando para atravessar a metrópole em um horário mais tranquilo.

O cinema, na noite mais concorrida da semana, estava tomado por jovens casais da emergente classe média baiana - uma garotada muito mais negra do que a que frequenta os shoppings paulistanos que já visitei mas mesmo assim muito mais branca do que o povo que circulava apressadamente pela rodoviária no outro lado da avenida. Diante do limitado espectro de possibilidades, decidi ver a versão dublada da comédia estadunidense “21 and over” (21 e além) - traduzida para o português como “finalmente 18”, marcando assim a diferença etária para a conquista da maioridade civil nos dois países.

            Trata-se de mais um filme pouco original sobre o descontrole calculado como um rito de passagem da infância para a idade adulta nas sociedades ocidentais contemporâneas. No enredo, três amigos (um branco, um judeu e um asiático) dos tempos do colegial se encontram em uma cidade universitária para celebrar a passagem do mais jovem deles (o asiático) para a vida adulta - e acabam se metendo em uma cômica aventura no termo da qual todos se transformam de alguma maneira e reafirmam a força do vínculo homossocial que os une.

            Como é comum em comédias desse tipo, o humor se estrutura sobre grosseiros estereótipos de raça, sexualidade e gênero. O filme não passa nem da primeira pergunta do famigerado teste de Bechdel (criado por uma feminista para avaliar a relevância das mulheres nas tramas): apenas uma personagem feminina tem nome e ela não conversa com outras mulheres, nem mesmo sobre os homens.

            Chamou-me atenção, no entanto, o exagerado contraste na reação do público a duas cenas de homoerotismo - uma envolvendo duas mulheres e a outra envolvendo dois homens. A diferença de recepção reflete, em alguma medida, as formas diversas como são construídas imageticamente essas cenas e seu erotismo.

            A primeira delas ocorre em uma residência estudantil de garotas latinas. Os protagonistas a invadem durante a noite à procura de uma garota que os ajude a levar um deles (o asiático), que está semi-consciente devido aos excessos alcoólicos, para casa. Depois de deixar seu companheiro mais frágil amarrado em um banheiro, os heróis ocidentais percorrem vários cômodos da casa à procura da informante até que deparam, em um quarto, com duas garotas latinas vendadas, escassamente vestidas e com as generosas nádegas voltadas para os homens. Ambas fazem apelos a uma governanta para que sejam punidas - e os protagonistas supõe que estão em meio a algum exótico rito de passagem. Um deles decide tirar proveito da situação e afirma que foram mandados pela governanta, que devem ocupar o lugar dominante no jogo. Diante da passividade das garotas, ele bate em ambas com uma palmatória e logo depois ordena que ambas se beijem. Diante da resistência de ambas insiste e, conseguindo que elas cedessem, pede ainda que elas comecem a se tocar mais intimamente: “Você, agora, pega no peitinho dela”.

            A coerção das mulheres para o deleite vouyeristico masculino não pareceu produzir nenhuma indignação no público feminino. Em meio aos amassos compulsórios o outro rapaz decide perguntar pela garota que procuram e, diante da resposta negativa de uma garota - que afirma que ninguém com aquele nome vivia ali - diz para o amigo: “Acho que estamos no lugar errado”. Olhando com prazer para a cena, no entanto, o primeiro responde: “Não, estamos no lugar certo”. Risos de prazer na platéia. Como é comum na fantasia dos estupradores das séries policiais, depois de um breve momento de resistência as garotas parecem gostar do exercício erótico que são obrigadas a praticar. Toda a construção da cena corrobora com a exaltação do prazer masculino e compactua com o jogo de mentiras encenado para garantir a submissão fetichizada das mulheres.

            A descoberta por outras garotas do companheiro deixado no banheiro, porém, dá início a um escândalo na casa, de forma que ambos são desmascarados e batem em retirada. A reação das mulheres é, então, violenta. No entanto, a indignação feminina não é apresentada como uma resposta justa à violação de seus corpos e dos seus códigos de conduta. Aparece, ao contrário, como uma reação histérica e racializada. As mulheres latinas, há pouco passivas e sexualizadas, são agora agressivas e descontroladas. Mais tarde, depois de uma fuga miraculosa, os rapazes batem na porta de uma outra residência feminina. Quando uma jovem loira abre convidativamente a porta um dos rapazes exclama: “Graças a Deus, você é branca!”.

            Mais adiante na narrativa as jovens latinas conseguem, através de um engenhoso ardil, capturar os dois vouyers da cena anterior. Depois de um corte brusco na cena, ambos se veem quase completamente nus (apenas meias cobrem suas genitálias) em um amplo salão, cercados por espectros femininos mascarados e cobertos por capas pretas. Tem início uma espécie de julgamento sombrio - no qual as mulheres têm o poder de decidir o destino dos homens que as ofenderam. A cerimônia é conduzida por uma garota com uma máscara de bode - como se uma mulher no exercício do poder, se não pode ser elevada ao estatuto dos sujeitos masculinos, precisasse ser rebaixada ao nível das feras. Da mesma forma, a busca por justiça das jovens latinas não pode tomar forma senão em um ritual satânico.

            A punição eleita pela comunidade indignada foi reproduzir as mesmas ofensas nos corpos dos homens para o prazer vouyerístico das mulheres - temperado, além disso, por matizes de vingança e sadomasoquismo. Em primeiro lugar, os detratores levam repetidas pancadas de palmatórias na carne nua de suas nádegas. Risos na platéia. Em seguida, a mulher-bode afirma que eles precisarão se beijar. Protestos veementes dos réus. A juíza consulta as vítimas, que se recusam a perdoá-los. Eles imploram por uma pena alternativa, que acaba sendo proposta: eles podem ter marcado o símbolo da irmandade na pele com ferro em brasa.

            Horrorizados com a perspectiva de ter seus corpos marcados definitivamente, ambos decidem tentar se beijar. Inquietação na platéia. A cena é sugestiva: dois corpos masculinos exuberantes, impecavelmente esculpidos pela bioascese holywoodiana, se aproximam e se tocam timidamente. Alguns momentos antes da captura, em um diálogo homossocial bastante emotivo, ambos haviam afirmado de forma comovente a intensidade do afeto que sentiam um pelo outro. Conforme seus lábios lentamente se aproximam os expectadores masculinos do cinema começam a protestar ruidosamente e se mexer com impaciência nos assentos. Quando finalmente se beijam, ouço gritos de perplexidade: “para, velho!”, “não, não, não”, “que nojo!”, “que horror!”, “não acredito”. A porção feminina do público não se manifesta senão discretamente.
           
             No momento do beijo, aparece talvez a piada mais espirituosa do filme. Um dos rapazes (o judeu) pergunta: “O que é isso, seu pau está ficando duro?”. O outro, que havia demonstrado uma postura misógina ao longo de todo o filme, responde com naturalidade: “Não resisti, é que você beija bem”. Ninguém riu, os protestos masculinos continuam. Até que uma das garotas latinas afirma: “Vai, pega no peitinho dele agora”. Pânico moral na platéia, que reage escandalizada. Diante da possibilidade de sentir um prazer homossexual que comprometa a natureza do vínculo homossocial - agravado pelo fato de que esse contato servia ao prazer feminino - o judeu afirma com firmeza preferir a pena alternativa: “Não posso continuar”. A dor violenta de uma marcação bestializante os libertaria definitivamente da possibilidade de prazer homoerótico. O alvoroço no cinema se dispersa.
     
           Na cena seguinte, já de manhã, ambos andam seminus pela universidade, com suas nádegas marcadas pelas palmatórias e pelo ferro em brasa. Risos da platéia. A imagem remete, em verdade, à sequência de abertura do filme - que mostrava exatamente aquele momento, sem que soubéssemos o que havia acontecido. Ouvimos apenas um diálogo sugestivo: “Isso nunca aconteceu com a gente”, e a resposta: “Não vamos nunca falar sobre isso”. Só agora entendemos a natureza do trauma. O caráter homoerótico de toda relação homossocial, que pode facilmente se tornar homossexual, permanece indizível no pacto de silêncio. A expressão da violência, como nos quartéis e nos mosteiros, é o que permite a conjuração do espectro.
          
              Afastada a ameaça emasculante, o público também se acalma - e volta a rir despreocupadamente de outros estereótipos estúpidos. 


23 de maio de 2013

Resenha do Livro: O desejo da nação


Masculinidade e branquitude na construção da República brasileira

Por José Tadeu Arantes


Agência FAPESP – Masculinidade e branquitude resumiriam, em um binômio, o ideal da elite brasileira de fins do século 19. Um ideal que, virando as costas para o passado (colonial ou monárquico) e para o povo (negro ou mestiço), teria definido um modelo de disciplinamento sexual e embranquecimento para construir o Brasil do futuro.

No pensamento dessa elite, ao mesmo tempo conservadora e modernizadora, passado e povo estavam associados à natureza, aos instintos e ao atraso. O modelo que a inspirava era um retrato idealizado dos países mais desenvolvidos da Europa ou dos Estados Unidos. Tal é o fio condutor do livro O desejo da nação, de Richard Miskolci, professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e coordenador do grupo de estudos “Corpo, Identidades e Subjetivações”, que reúne pesquisadores de várias universidades brasileiras.


Resultado de um pós-doutorado feito na Universidade de Michigan, em 2008, e de um Auxílio à Pesquisa, o livro, que também teve apoio da FAPESP para publicação, investiga os quereres e os temores dessa elite que promoveu a transição da monarquia à República e a modernização conservadora do país.


“Investiguei os ideais nacionais a contrapelo, por meio da análise dos fantasmas que assombravam nossas elites: desde o medo dos negros, que após a abolição passou a significar medo do povo, até as ansiedades sexuais e de gênero, que ameaçavam o projeto de construir a nação a partir de uma imagem idealizada da Europa”, disse Miskolci, atualmente professor visitante no Departamento de Estudos Feministas da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, Estados Unidos, à Agência FAPESP.


“Esses fantasmas estiveram na base da criação de um modelo bem brasileiro de modernidade: autoritário e discriminatório. Procurei demonstrar que, apesar de divergências secundárias, as elites modernizadoras convergiam na idealização de uma nação baseada em um paradigma de embranquecimento e heterossexualidade reprodutiva compulsória. A explicitação das supostas ameaças a esse ideal, dos fantasmas das elites, nos permite compreender melhor as transformações históricas, que uma perspectiva embasada apenas em processos racionais tende a ignorar ou minimizar”, disse.


Para demonstrar sua tese, Miskolci recolheu vários discursos políticos, científicos ou jornalísticos da época, como, por exemplo, a série de artigos publicados em A Província de São Paulo pelo médico Luís Pereira Barreto, nos quais esse pioneiro do positivismo no Brasil atemorizava os seus leitores com a imagem de uma perigosa “onda negra” que a abolição despejaria sobre a sociedade: “uma horda de homens semibárbaros, sem direção, sem um alvo social”.

Mas o pesquisador foi além da documentação explicitamente ideológica e procurou captar esse mesmo ideal, higienista e disciplinador, que perpassava tanto a esfera pública quanto a vida privada, apagando a fronteira entre ambas, por meio da análise de três romances exemplares do período: O Ateneu, de Raul Pompeia; Bom Crioulo, de Adolfo Caminha; e Dom Casmurro, de Machado de Assis.

Em sua análise de Dom Casmurro, Miskolci subverte a leitura tradicional que viu no romance de Machado de Assis o relato amargo de um homem já idoso (Bentinho), atormentado pela memória da relação adúltera que, anos atrás, a esposa (Capitu) teria mantido com seu melhor amigo (Escobar). Do ponto de vista do pesquisador, o verdadeiro fio condutor do romance seria a atração entre Bentinho e Escobar, desempenhando Capitu o papel de mediadora (ao mesmo tempo vítima e cúmplice) desse desejo erótico secreto e inconfessável.

Como outros textos de Machado de Assis, Dom Casmurro faz a crítica, sempre velada e sutil, dessa ordem social hipócrita. “O fato de a atração entre Bentinho e Escobar provavelmente jamais ter-se consumado em termos sexuais, não impediu, ao contrário, contribuiu, para que se tornasse a força propulsora da vida do protagonista”, afirmou o pesquisador.

“Nos estratos sociais mais privilegiados da época, o casamento passou a ser uma demanda muito forte, que associava a respeitabilidade do homem à condição de marido e pai. Era uma obrigação que envolvia não apenas o interesse econômico, mas também outros interesses, como a necessidade de gerar herdeiros ou encobrir segredos. O casamento à brasileira tinha características próprias, como a manutenção da moral dupla que permitia aos homens o acesso a outras mulheres e, como demonstrei na minha análise, também a outros homens. Às mulheres cabia um papel duplamente subordinado, já que, além de obedecer ao marido, elas deviam também aceitar suas traições", disse Miskolci.

O que sobrou disso tudo no Brasil de hoje? Os debates contemporâneos, bastante acirrados, que têm como palco principal as mídias sociais, mostram que as questões étnicas e de orientação sexual ainda polarizam fortemente a sociedade brasileira. “As demandas atuais envolvendo direitos humanos demonstram que a cidadania ainda não foi universalizada em nosso país e há grupos políticos que lutam contra essa possibilidade”, comentou.

“As mulheres ainda não têm reconhecido o direito de decidirem se querem ou não ser mães; negros, indígenas e homossexuais ainda enfrentam dificuldades para fazer valer seus direitos”, prosseguiu o pesquisador. “De forma geral, a cidadania ainda é mais acessível e reconhecida para quem é homem, branco, rico e heterossexual.” Como essas características estão longe de definir uma maioria, o Brasil continuaria sendo, para citar as famosas palavras de Stephan Zweig, um “país do futuro”.