30 de maio de 2011

Numas Recomenda: Livro

Escritor argentino fala sobre sexualidade de recifenses em livro reeditado

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FABIO VICTOR
DE SÃO PAULO
Há 50 anos, ao deixar a mulher em Buenos Aires e aceitar o convite do teatrólogo Hermilo Borba Filho para dar aulas de teatro no Recife, Tulio Carella iniciava uma jornada que o conduziria ao prazer selvagem, à tortura e, por fim, à ruína.
Teatrólogo, poeta, tradutor e ensaísta argentino, Carella (1912-1979) era, naquele 1960, um intelectual respeitado em seu país.
Foi indicado a Hermilo (1917-1976) pelo italiano radicado em São Paulo Alberto d'Aversa (1920-1969), a quem fora feito o convite original.
No Brasil, lhe atraíam "a brasa que arde como um fogo maravilhoso e perdurável", o "duplo aspecto destruidor e purificador que dá luz e sombra, ilumina e barra o caminho ao mesmo tempo".
Achava que o país deveria se chamar "Estados Unidos do Fogo".

Divulgação
O escritor e teatrólogo argentino Tulio Carella, que viveu no Recife no início dos anos 60
O escritor e teatrólogo argentino Tulio Carella, que viveu no Recife no início dos anos 60
No Recife, encantou-se com os negros ("A cor escura dos nordestinos me atrai como um abismo") e, guiado pela solidão nos grandes intervalos da atividade acadêmica, entregou-se à libertinagem sexual, principalmente homossexual.
Vagava pelo centro em encontros e bolinações com homens rudes, operários de pouca instrução. Registrou tudo, com crueza de detalhes íntimos, em seus diários.
Numa época em que crescia o desconforto dos militares com o momento político (Jango assumiria o governo em 1961), num bastião esquerdista (berço das Ligas Camponesas de Francisco Julião), a movimentação sorrateira de Carella foi tomada por subversão política.
Supondo que ele era o elo entre as Ligas e Cuba, os militares o prenderam e torturaram. Ao acharem os diários, descobriram que tudo não passava de orgia.
Despacharam-no de volta para Buenos Aires, não sem antes ameaçar divulgar os diários, caso ele denunciasse o que sofrera.
Em 1968, Borba Filho convenceu Carella a publicar os diários no Brasil, numa coleção erótica criada pelo teatrólogo pernambucano na José Alvaro Editor.
"Orgia", o livro, que passou anos esgotado, tornou-se um cult da literatura gay e raridade até mesmo em sebos. Ganha agora reedição pela Opera Prima Editorial.
É TUDO VERDADE
Quando voltou à Argentina, Carella trabalhou ficcionalmente os diários e fez um "roman à clef", história real contada como ficção.
O livro alterna narração em terceira pessoa com relato de diário tradicional, em primeira pessoa.
Responsável pelo novo volume, o jornalista e editor Alvaro Machado assina as notas e uma introdução que situa historicamente a obra e seu autor. Ele viajou a Buenos Aires e ao Recife e revisou lapsos de digitação, pontuação e montagem tipográfica da edição de 1968.
Machado conheceu "Orgia" por meio de "Devassos no Paraíso" (Record, esgotado), de João Silvério Trevisan, estudo sobre a homossexualidade no Brasil e maior responsável por difundir Carella e sua obra depois de esgotada a edição original.
Autor e livro viraram ícones da militância gay --Carella foi listado pelo Grupo Gay da Bahia como um dos "cem desviantes sexuais mais célebres na história do Brasil".
Em "Devassos", Trevisan transcrevia o trecho em que o autor faz sexo com um halterofilista sarará chamado King-Kong (leia ao lado), depois reproduzida em outras obras fora do Brasil.
"Do que eu conheço de literatura e de arte homoerótica, 'Orgia' é uma das coisas mais emblemáticas e contundentes, inclusive pela qualidade literária", diz Trevisan.
O escritor classificou de "muito estranho" não ter sido consultado por Machado para a reedição. "Porque, na verdade, eu que revelei Tulio Carella para o Brasil e os argentinos. Talvez houvesse uma competição embutida."
O sociólogo e professor da Unicamp Laymert Garcia dos Santos destaca o caráter socioantropológico de "Orgia", lembrando que, ao longo da obra, Carella repete uma pergunta: "Que é um negro?".
"O livro traz uma visão diferente: qual é o modo de ser do negro na intimidade absoluta. O que interessa é o ponto de vista ontológico --o modo de ser negro-- e o ponto de vida epistemológico _como posso conhecer o modo de ser negro, mergulhando fundo na sexualidade deles."
ORGIA
AUTOR Tulio Carella
TRADUÇÃO Hermilo Borba Filho
EDITORA Opera Prima
QUANTO R$ 64 (312 págs.)

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