Tema racial inspira nova biografia
Lilia Moritz Schwarcz investiga a influência da origem e da situação social do ficcionista no corpo de sua produção
A biografia de Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) considerada definitiva é a do paulista Francisco de Assis Barbosa. Publicada em 1952 e ainda no catálogo da editora José Olympio, A Vida de Lima Barreto é fruto de cinco anos de pesquisas, período em que Barbosa manuseou originais, notas, trechos esparsos do Diário Íntimo, cartas, cadernos de recortes de jornal - documentos hoje incorporados na seção de manuscritos da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. "Mas ele, explícita e declaradamente, afirmou que não trataria do tema racial na obra de Barreto. Na minha opinião, essa é uma questão fundamental para o autor, cuja vida foi marcada pela construção de alguns detalhes sociais da diferença, devidamente manipulados: raça, situação social, e localização", afirma a antropóloga e pesquisadora Lilia Moritz Schwarcz, que viu ali um caminho fecundo para aprofundar novos estudos sobre o autor, cujos 130 anos de nascimento foram lembrados ontem.
Desde o ano passado, portanto, Lilia pesquisa a documentação da Biblioteca Nacional a fim de preparar a sua biografia, que ainda não tem data de publicação - e trará a questão racial como um dos seus fios condutores. "Lima sempre se definiu como pobre, mulato, um morador do subúrbio e fez de sua literatura uma expressão desta condição. E, ao tratar de seu hábitat, pude o ampliar o espaço simbólico do Rio incluindo o subúrbio", comenta Lilia, que visitou o local onde viveu o escritor e constatou que muitas características continuam intactas, como se o tempo tivesse congelado. "Ainda há galinhas e cachorros soltos nas ruas, além de pessoas jogando bola."
Lima Barreto sempre realizou uma literatura de testemunho e o tema da raça está presente todo tempo. Lilia observa que há um momento em seu Diário Íntimo em que ele diz: "É difícil não nascer branco". E ainda "a raça para os brancos é conceito, para os negros pré-conceito". "Se tomarmos Recordações do Escrivão Isaías Caminha, romance autobiográfico, o personagem principal conhece o preconceito ao chegar no Rio, quando é acusado injustamente, ou quando deixa de ser servido num bar por conta de sua cor. O mesmo ocorre em Clara dos Anjos: mulata, pobre e prostituída. Também em Cemitério dos Vivos, romance incompleto pautado na experiência no sanatório, e no Diário do Hospício, Lima recheia a narrativa com episódios de preconceito e de sofrimento pessoal."
Aos poucos, Lilia foi detalhando a contraditória personalidade de Lima Barreto. "Seu comportamento era sempre ambivalente", observa a pesquisadora. "Condenava o determinismo racial mas temia morrer louco (assim como seu pai); era uma voz do subúrbio, mas tinha estima pelas instituições da capital; condenava a literatura acadêmica que considerava por demais oficial, mas tentou entrar na instituição por três vezes; era favorável às afirmações culturais negras, mas condenava o samba, o carnaval. Enfim, ele era muito Policarpo Quaresma; uma espécie de D. Quixote tropical."
Ao mesmo tempo, sua determinação em se firmar como escritor era constante - segundo Lilia, Lima fazia questão de se apresentar como tal, ainda que trabalhasse como amanuense (ou seja, um copiador de documentos) no Ministério da Guerra, do qual era funcionário público. Ele, porém, parecia desprezar a função pois, como observou Lilia em sua pesquisa, preferia ocupar o tempo fazendo anotações sobre sua obra no verso da documentação. Uma espécie de desabafo de geração. "É possível notar como ele usava seu tempo livre para escrever, e que não tinha qualquer apreço pela profissão. Por isso mesmo, era à literatura que se dedicava. Tanto que em seu diário confessou: "A literatura, ou me mata ou me salva"."
Basta observar, por exemplo, um trecho das anotações que deixou no verso do manuscrito de Policarpo Quaresma: "Era bom saber se a alegria que trouxe à cidade a lei da abolição, foi geral pelo país. Havia de ser, porque já tinha entrado na convivência de todos a sua injustiça originária. Quando eu fui para o colégio, um colégio público, à rua do Rezende, a alegria entre a criançada era grande. Nós não sabíamos o alcance da lei, mas a alegria ambiente nos tinha tomado. A professora, D. Tereza Pimentel do Amaral, uma senhora muito inteligente, creio que nos explicou a significação da coisa; mas com aquele feitio mental de crianças, só uma coisa me ficou: livre! livre! Julgava que podíamos fazer tudo que quiséssemos; que dali em diante não havia mais limitação aos progressistas da nossa fantasia. Mas como estamos ainda longe disso! Como ainda nos enleiamos nas teias dos preceitos, das regras e das leis!"
Lilia não acredita, portanto, que seja coincidência o fato de que, nas costas de seu romance mais importante - e evidentemente autobiográfico - ele desenvolva tal tipo de raciocínio e mostre como esse era um momento de desencanto: nostálgico. "Aí estava, como ele mesmo dizia, "a República que não foi"."
Em dois artigos que serão divulgados em publicações especializadas, a pesquisadora detalha a passagem do escritor pelo Hospício Nacional de Alienados, iniciada em 1914. A partir de análise dos prontuários arquivados na biblioteca do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, Lilia observa que, apesar de escritor de certa fama, reconhecido como voz crítica e atuante, Barreto é registrado como um alienado sujeito ao delírio do álcool. "Tudo ao contrário do que era seu grande sonho: o de projetar-se como uma persona literária e um testemunho desses novos tempos."
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