Fazendo ciências sociais no Brasil
por Yvonne Maggie - no seu blog pessoal "A vida como ela parece ser"
A Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs), criada em 1977, congrega centros de pesquisa e pós-graduação em antropologia, ciência política e sociologia para discutir questões relevantes da agenda política e científica do País e do mundo. Anualmente, desde sua criação, promove encontros com extensa programação de palestras, mesas redondas, grupos de trabalho, simpósios, fóruns e cursos. Esses congressos reúnem grande fatia dos cientistas sociais brasileiros e alguns estrangeiros.
Os primeiros encontros, realizados em Águas de São Pedro, ainda em plena ditadura, eram frequentados por poucos cientistas. Com o passar dos anos a Anpocs tornou-se um dos mais importantes centros de discussão de temas relacionados à vida cotidiana de diversos grupos sociais, à política, às relações internacionais e à pesquisa pura.
Há anos nossos encontros se realizam nos hotéis de Caxambu, que hospedavam famílias em férias para banhos e curas nas águas sulfurosas da cidade. Anualmente os hotéis da cidade abrem suas portas para um crescente número de cientistas sociais, pós-graduandos e graduandos do Brasil e de outros países para debaterem temas variados.
O 35º Congresso, realizado em outubro de 2011 e secretariado pela antropóloga Maria Filomena Gregori, foi um encontro dos mais bem-sucedidos, não só pela organização de sempre, mas pela forma com que propiciou as relações de convívio e debate entre as pessoas ali reunidas. O clima de descontração fez do encontro um dos mais aprazíveis a que estive presente, e possibilitou o sucesso das discussões sobre temas essenciais para a vida no mundo contemporâneo.
Assisti a uma belíssima e emocionante mesa redonda organizada pela antropóloga Laura Moutinho, professora do departamento de antropologia da Universidade de São Paulo (USP) e minha ex-aluna de graduação e mestrado. Há uns meses Laura me disse que iria organizar na Anpocs uma mesa intitulada – Direitos humanos, sujeitos e reconhecimento: novas moralidades em debate –, composta por um homem trans, uma ex-prostituta e organizadora do movimento das prostitutas no Brasil e uma antropóloga feminista. Assustada, expressei um leve ai. Laura timidamente exclamou: “Não se preocupe!!!”. Mesmo não sendo este o tema e objeto de minhas pesquisas, fiz questão de comparecer ao evento. Confesso que foi uma das experiências mais verdadeiramente antropológicas que presenciei em anos de congressos e reuniões desse tipo.
A fala dos oradores deixou a plateia emocionada. Não porque lá estivessem nativos esdrúxulos expondo e expondo-se como vítimas a cientistas – numa espécie de “antropologia de varanda” feita antes de Bronislaw Malinowski, um dos heróis fundadores da antropologia, ter criado o método da observação participante –, mas porque possibilitaram o que a boa antropologia ensina: conhecer o sistema de pensar, sentir e agir dos diversos grupos humanos buscando o que os universaliza.
A mesa, coordenada por Laura Moutinho, era composto de dois expositores: um homem trans (categoria que na “sopa de letrinhas” do movimento LGBT significa uma moça que passou por cirurgias para se transformar em homem, biológica e subjetivamente) e uma ex-prostituta, líder do movimento de enorme sucesso criador da grife Daspu. A debatedora, Guita Debert, uma antropóloga, professora titular da Unicamp e feminista.
Guilherme Silva de Almeida – doutor em Saúde Coletiva, professor da Uerj e coordenador do Laboratório Integrado da Diversidade Sexual, Políticas e Direitos (Lidis/Uerj) – se autodefine como homem trans. É um rapaz viril, mas ao mesmo tempo, sedutor e gentil, e partiu da sua experiência e da história de outras pessoas que passaram pelo mesmo processo, para esboçar o quadro teórico ou os princípios gerais a seu ver fundamentais para explicar essa vivência, em um tom otimista e muito carinhoso para os que o ouviam. Gabriela Leite, a ex-prostituta, discursou do ponto de vista do movimento das prostitutas em oposição a alguns setores do movimento feminista que tendem a vê-las como vítimas a serem resgatadas e, fez mais, levou-nos a pensar sobre o quadro teórico mais amplo em que está inserida sua luta. Guilherme situou o processo experimentado por ele e muitas outras pessoas como uma transformação para poder vivenciar a normalidade e não a abjeção ou o sentimento de inversão e achincalhe. Uma busca de viver sua individualidade plena, sem estar “montado no estribo da biologia”, como definiu.
Tudo o que foi dito naquela mesa me pareceu uma verdade incontestável e Guilherme me fez pensar sobre a antropologia clássica e de que modo o estudo das novas maneiras de fazer-se indivíduo pode ser frutífero para repensar o lugar do pesquisador na contemporaneidade. Neste mundo tão cheio de antropólogos que, ao contrário de Guilherme, propõem engenharias sociais e pensam muito pouco nos objetos dessas políticas, a mesa organizada por Laura Moutinho me devolveu a esperança. Esta proposta conduz a um mergulho nos sentimentos e na vivência das pessoas pesquisadas.
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