Texto de Márcio Zamboni
Neste último sábado (18/05)
cheguei por volta das 19:00 horas na rodoviária de Salvador e, diante do
trânsito caótico da Avenida Tancredo Neves e do movimento intenso no terminal
urbano de ônibus, decidi assistir algum filme no Shopping Iguatemi (no qual
chegamos por uma longa passarela), deixando para atravessar a metrópole em um
horário mais tranquilo.
O cinema, na noite mais concorrida da semana, estava tomado por jovens casais da
emergente classe média baiana - uma garotada muito mais negra do que a que
frequenta os shoppings paulistanos que já visitei mas mesmo assim muito mais
branca do que o povo que circulava apressadamente pela rodoviária no outro lado
da avenida. Diante do limitado espectro de possibilidades, decidi ver a versão
dublada da comédia estadunidense “21 and over” (21 e além) - traduzida para o
português como “finalmente 18”, marcando assim a diferença etária para a
conquista da maioridade civil nos dois países.
Trata-se
de mais um filme pouco original sobre o descontrole calculado como um rito de
passagem da infância para a idade adulta nas sociedades ocidentais
contemporâneas. No enredo, três amigos (um branco, um judeu e um asiático) dos
tempos do colegial se encontram em uma cidade universitária para celebrar a
passagem do mais jovem deles (o asiático) para a vida adulta - e acabam se
metendo em uma cômica aventura no termo da qual todos se transformam de alguma
maneira e reafirmam a força do vínculo homossocial que os une.
Como
é comum em comédias desse tipo, o humor se estrutura sobre grosseiros
estereótipos de raça, sexualidade e gênero. O filme não passa nem da primeira
pergunta do famigerado teste de Bechdel (criado por uma feminista para avaliar
a relevância das mulheres nas tramas): apenas uma personagem feminina tem nome
e ela não conversa com outras mulheres, nem mesmo sobre os homens.
Chamou-me
atenção, no entanto, o exagerado contraste na reação do público a duas cenas de
homoerotismo - uma envolvendo duas mulheres e a outra envolvendo dois homens. A
diferença de recepção reflete, em alguma medida, as formas diversas como são
construídas imageticamente essas cenas e seu erotismo.
A
primeira delas ocorre em uma residência estudantil de garotas latinas. Os
protagonistas a invadem durante a noite à procura de uma garota que os ajude a
levar um deles (o asiático), que está semi-consciente devido aos excessos
alcoólicos, para casa. Depois de deixar seu companheiro mais frágil amarrado em
um banheiro, os heróis ocidentais percorrem vários cômodos da casa à procura da
informante até que deparam, em um quarto, com duas garotas latinas vendadas,
escassamente vestidas e com as generosas nádegas voltadas para os homens. Ambas
fazem apelos a uma governanta para que sejam punidas - e os protagonistas supõe
que estão em meio a algum exótico rito de passagem. Um deles decide tirar
proveito da situação e afirma que foram mandados pela governanta, que devem
ocupar o lugar dominante no jogo. Diante da passividade das garotas, ele bate
em ambas com uma palmatória e logo depois ordena que ambas se beijem. Diante da
resistência de ambas insiste e, conseguindo que elas cedessem, pede ainda que
elas comecem a se tocar mais intimamente: “Você, agora, pega no peitinho dela”.
A
coerção das mulheres para o deleite vouyeristico
masculino não pareceu produzir nenhuma indignação no público feminino. Em meio
aos amassos compulsórios o outro rapaz decide perguntar pela garota que
procuram e, diante da resposta negativa de uma garota - que afirma que ninguém
com aquele nome vivia ali - diz para o amigo: “Acho que estamos no lugar
errado”. Olhando com prazer para a cena, no entanto, o primeiro responde: “Não,
estamos no lugar certo”. Risos de prazer na platéia. Como é comum na fantasia
dos estupradores das séries policiais, depois de um breve momento de
resistência as garotas parecem gostar do exercício erótico que são obrigadas a
praticar. Toda a construção da cena corrobora com a exaltação do prazer masculino
e compactua com o jogo de mentiras encenado para garantir a submissão
fetichizada das mulheres.
A
descoberta por outras garotas do companheiro deixado no banheiro, porém, dá
início a um escândalo na casa, de forma que ambos são desmascarados e batem em
retirada. A reação das mulheres é, então, violenta. No entanto, a indignação
feminina não é apresentada como uma resposta justa à violação de seus corpos e
dos seus códigos de conduta. Aparece, ao contrário, como uma reação histérica e
racializada. As mulheres latinas, há pouco passivas e sexualizadas, são agora
agressivas e descontroladas. Mais tarde, depois de uma fuga miraculosa, os
rapazes batem na porta de uma outra residência feminina. Quando uma jovem loira
abre convidativamente a porta um dos rapazes exclama: “Graças a Deus, você é
branca!”.
Mais
adiante na narrativa as jovens latinas conseguem, através de um engenhoso
ardil, capturar os dois vouyers da
cena anterior. Depois de um corte brusco na cena, ambos se veem quase
completamente nus (apenas meias cobrem suas genitálias) em um amplo salão,
cercados por espectros femininos mascarados e cobertos por capas pretas. Tem
início uma espécie de julgamento sombrio - no qual as mulheres têm o poder de
decidir o destino dos homens que as ofenderam. A cerimônia é conduzida por uma
garota com uma máscara de bode - como se uma mulher no exercício do poder, se
não pode ser elevada ao estatuto dos sujeitos masculinos, precisasse ser
rebaixada ao nível das feras. Da mesma forma, a busca por justiça das jovens latinas
não pode tomar forma senão em um ritual satânico.
A
punição eleita pela comunidade indignada foi reproduzir as mesmas ofensas nos
corpos dos homens para o prazer vouyerístico das mulheres - temperado, além
disso, por matizes de vingança e sadomasoquismo. Em primeiro lugar, os
detratores levam repetidas pancadas de palmatórias na carne nua de suas
nádegas. Risos na platéia. Em seguida, a mulher-bode afirma que eles precisarão
se beijar. Protestos veementes dos réus. A juíza consulta as vítimas, que se
recusam a perdoá-los. Eles imploram por uma pena alternativa, que acaba sendo
proposta: eles podem ter marcado o símbolo da irmandade na pele com ferro em
brasa.
No
momento do beijo, aparece talvez a piada mais espirituosa do filme. Um dos
rapazes (o judeu) pergunta: “O que é isso, seu pau está ficando duro?”. O
outro, que havia demonstrado uma postura misógina ao longo de todo o filme,
responde com naturalidade: “Não resisti, é que você beija bem”. Ninguém riu, os
protestos masculinos continuam. Até que uma das garotas latinas afirma: “Vai,
pega no peitinho dele agora”. Pânico moral na platéia, que reage escandalizada.
Diante da possibilidade de sentir um prazer homossexual que comprometa a
natureza do vínculo homossocial - agravado pelo fato de que esse contato servia
ao prazer feminino - o judeu afirma com firmeza preferir a pena alternativa:
“Não posso continuar”. A dor violenta de uma marcação bestializante os
libertaria definitivamente da possibilidade de prazer homoerótico. O alvoroço
no cinema se dispersa.
Na
cena seguinte, já de manhã, ambos andam seminus pela universidade, com suas
nádegas marcadas pelas palmatórias e pelo ferro em brasa. Risos da platéia. A
imagem remete, em verdade, à sequência de abertura do filme - que mostrava
exatamente aquele momento, sem que soubéssemos o que havia acontecido. Ouvimos
apenas um diálogo sugestivo: “Isso nunca aconteceu com a gente”, e a resposta:
“Não vamos nunca falar sobre isso”. Só agora entendemos a natureza do trauma. O
caráter homoerótico de toda relação homossocial, que pode facilmente se tornar
homossexual, permanece indizível no pacto de silêncio. A expressão da
violência, como nos quartéis e nos mosteiros, é o que permite a conjuração do
espectro.
Afastada
a ameaça emasculante, o público também se acalma - e volta a rir
despreocupadamente de outros estereótipos estúpidos.