Por Profa. Dra. Lilia Schwarcz no Jornal O Estado de S. Paulo
Muitas vezes a realidade acaba por se mostrar bem mais criativa do que a própria imaginação. Se são muitos os exemplos retirados da história, arrisco aqui mais um: o caso de João Cândido Felisberto. Marinheiro de formação, filho de ex-escravos, participou da Revolta da Chibata de 1910, transformando-se em líder do movimento, quando ganhou a alcunha de Almirante Negro. A história dessa insurreição popular, até hoje pouco contada entre nós, faz parte da lógica dos vários levantes que assolaram a, assim chamada, República Velha, que nasceu prometendo a igualdade, mas acabou entregando a exclusão social. Se a princípio a República foi saudada como um movimento cidadão, e de distribuição equânime de direitos – afastado de vez o fantasma da escravidão –, já o cotidiano mostrou-se muito distinto. A Reforma do Prefeito Pereira Passos transformou o Rio de Janeiro em um cartão postal do novo Brasil moderno, mas tratou de expulsar boa parte da população pobre para os arredores da cidade: os subúrbios cariocas, cada vez mais apinhados de gente e carentes de infra-estrutura ou das benesses do progresso. Exemplo de insatisfação podem ser encontrados nas palavras de uma série de intelectuais, coetâneos, como Lima Barreto ou Euclides da Cunha – descontentes com “a República que não foi”. Termômetro aquecido são as inúmeras revoltas que estouram nesse momento, anunciando críticas de toda sorte: Canudos (1897-1900) a Revolta da Armada (1902-3), a Revolta da Vacina (1904), Contestado (1912) , e finalmente a Revolta da Chibata.
O estopim do movimento era claro e guardava uma lógica simbólica das mais perversas. No dia 16 de novembro de 1910, uma série de embarcações nacionais e estrangeiras aportam na Baía da Guanabara para saudar a posse do novo presidente da República: o marechal Hermes da Fonseca. A eleição havia sido tensa, uma vez que o militar acabara derrotando o candidato mais popular, Rui Barbosa, que representava, nesse momento, o projeto civilista. Já Hermes corporificava a volta do exército ao poder, e foi logo recebido com grandes doses de desconfiança. Assim, se em parte dos navios reinava um ambiente de congratulação, em um deles – o encouraçado Minas Gerais, o maior navio de guerra brasileiro – o clima era em tudo distinto. Na madrugada daquele dia, a tripulação fora obrigada a presenciar os castigos infligidos ao marinheiro Marcelino Rodrigues Menezes -- 250 chibatadas -- e seu recolhimento à prisão, sem direito a tratamento médico. Seu delito fora ferir à navalha o cabo Valdemar Rodrigues Menezes, que o acusara de levar ao navio duas garrafas de cachaça.
A chibata é punição herdada da marinha portuguesa, mas no Brasil ganhou carga das mais pesadas. Com a introdução da escravidão em todo o território nacional, tal castigo passou a fazer parte do código punitivo e das sensibilidades locais, sendo, com frequência aplicado em locais públicos, para assim servir de humilhação, execração coletiva e exemplo geral. A escravidão acabara em maio de 1888, mas a sevícia continuava impune na Marinha, e amparada pelo corpo da lei, que arrogava a ela o poder de “quebrar o mau gênio” dos rebeldes. E foi naquele dia que, reunidos em torno das beliches de seus quartos, os marinheiros do Minas Gerais, decidiram que os maus tratos iriam acabar. O marujo João Cândido tinha então 30 anos, e se tornaria o chefe de uma revolta que lhe custaria caro, mesmo passados os tempo da República Velha, do Estado Novo, do Populismo e do Regime Militar. Morreria aos 89 anos, nos idos de 1969, guardando a pecha de “sujeito perigoso”, por mais que tentasse se esconder num insignificante anonimato de carregador nas docas da Praça XV.
Na verdade, a vida de João Cândido mais parece uma saga, a lembrar da sorte de tantos brasileiros de origem humilde e, ainda mais, estigmatizados por sua cor negra. Nascido numa propriedade rural, localizada na fronteira entre Brasil e Argentina, passa a primeira infância ao lado do pai, o qual, depois de liberto, atua como tropeiro na lida com o gado. Com 14 anos recém feitos é levado para a Marinha, onde faz carreira. Boa parte de seus colegas eram negros e pobres, como ele, e acostumados à labuta pesada e regrada. A marinha era o destino da escória; considerada uma espécie de castigo para jovens indisciplinados, que ingressavam mais cedo, e por meio dela, na disciplina militar. O fato é que com 20 anos, nosso personagem já se destaca como instrutor de aprendizes marinheiros, viaja por toda a costa brasileira, assim como empreende algumas rotas internacionais. Numa delas, em missão especial na Inglaterra, assiste à montagem e entrega do Minas Gerais: um navio de manejo difícil e sofisticado; especialmente encomendado pela marinha brasileira.
Várias são as “bagagens” que traz no retorno dessas viagens. Da Amazônia importaria uma tuberculose renitente, que se manifestaria em vários momentos da sua vida. Da Inglaterra carregaria a experiência dos movimentos sociais, dos sindicatos, e a primeira consciência da luta de classes. A Marinha, a essas alturas, e depois da Revolta da Armada, havia sido relegada ao abandono absoluto e praticamente, desde a Guerra do Paraguai que terminara em 1870, pouco se investia no reaparelhamento da frota. Por outro lado, o processo de recrutamento era feito de maneira coercitiva, sendo boa parte de seus elementos analfabetos e alistados à força pela polícia.
Assim, o cenário da revolta ia se delineando. No entanto, entre a sua realidade e a projeção que se criou em torno dela o hiato é grande. O motivo imediato foi a chibata, e o objetivo único a proibição de seu uso. O lema era curto e grosso: “Abaixo a chibata”. Eventos ganham, porém, significados e proporções inesperados, dependendo do contexto em que se estabelecem. Apesar de durante a eclosão do levante terem ocorrido raros bombardeios e poucas mortes, a repercussão foi imensa. A Revolta logo virou pretexto para a repressão generalizada e, apesar da primeira promessa de anistia, o destino dos rebelados seria diverso, e a própria cidade viveria em estado de sítio.
É em torno desse episódio dramático e de seu protagonista central que se debruçam duas oportunas publicações recentes: um livro de não ficção, resultado de pesquisa criteriosa empreendida pelo jornalista Fernando Granato; e outro de ficção, escrito por Alcy Cheuiche, autor de mais de vinte novelas, boa parte de conteúdo histórico. Granato acompanha o Almirante Negro até sua morte. Já Cheuiche escolhe terminar sua narrativa no momento em que João Antônio ganha a liberdade. A opção faz com que o leitor tenha sensações distintas ao término dos dois livros: se o romance passa a impressão de uma certa redenção e a merecida liberdade; já a história pregressa mostrou-se distinta, e a obra do jornalista revela-se avessa a qualquer happy end.
João Antônio veria muitos colegas amotinados morrerem assassinados; seria preso na Ilha das Cobras e escaparia com vida de uma cela em que dezesseis companheiros seus morreram asfixiados pelo calor e pelo efeito do cloro espalhado pelo chão; permaneceria internado no Hospital de Alienados (um verdadeiro paraíso quando comparado ao inferno da prisão); para ser libertado em 1912: tuberculoso, magro e pobre. Mesmo assim, volta ao mar, primeiro como carregador nas docas e depois atuando novamente na marinha. No entanto, sempre reconhecido, perde sistematicamente os empregos que consegue. Casa-se duas vezes, e na segunda conhece novo inferno, dessa vez domiciliar: sua mulher e filha colocam fim às suas vidas ateando fogo em suas vestes.
A despeito de tantos acidentes graves de percurso, o Almirante Negro, continuaria trabalhando na Praça XV, onde levava cestos cheios de peixe para o mercado. Distante da política, resiste a tentativas de assédio, como as que empreendem participantes do movimento integralista, já nos anos 1960. É só em 1968 que presta depoimento ao Museu da Imagem e do Som, e sua história passa a ser mais conhecida. Orgulhoso, relata os tempos gloriosos da Revolta, seus anos de penúria, as mazelas domésticas e a tuberculose que insiste em o visitar de tempos em tempos. Mas não seria ela que lhe tiraria a vida, mas sim um câncer fulminante no intestino.
No começo dos anos 1970, João Bosco e Aldir Blanc, inspirados pela vida de João Cândido escrevem “O mestre sala dos mares”; música que se tornaria célebre na voz de Elis Regina. Mas o regime tratou de censurar a primeira versão da canção, que tratava de tema vetado pelas Forças Armadas. Para driblar a proibição, entraram na letra mulatas, baleias e polacas, desavisadas, mas o refrão passou impune: “Salve, o navegante negro, que tem por monumento as pedras pisadas no cais. Mas faz tanto tempo”. E foi só recentemente, em 2008, que Lula sancionou a anistia póstuma do marinheiro, após proposta feita pela então senadora Marina Silva; datada originalmente de 2002.
São muitas as personagens de nossa história que continuam esquecidas, proibidas ou mal lembradas. O Almirante Negro, que morreu no anonimato da Praça XV e negando ser quem era, tem agora sua vida romanceada e devidamente documentada. Termino como comecei. O destino de João Cândido foi tão imaginoso, que seu relato, por si só, já vale muitos romances, tantas narrativas e mais pesquisas. Estamos só começando e “nem faz tanto tempo ...”