16 de novembro de 2011

Hermano Vianna - Peter Fry



Seu olhar de quem não nasceu aqui muitas vezes é o mais brasileiro de todos.

Peter Fry fez 70 anos na semana passada. O Brasil tem tido o privilégio de conviver com esse antropólogo de origem britânica desde 1970, quando ele aportou em Santos para ser professor na Unicamp. Um de seus livros ganhou o título “Para inglês ver”. Tomara que continue nos vendo, nos ensinando a ver e aprendendo conosco a ver por um bom tempo. 
Seu olhar de quem não nasceu aqui muitas vezes é o mais brasileiro de todos e nos força a cultivar, contra sonhos poderosos de identidade certinha e estável, tudo aquilo que nos torna diferentes, originais e imprevisíveis. 


Peter se naturalizou brasileiro, escolheu ser brasileiro, mas felizmente não perdeu o espírito nômade, inquieto, de quem se sente em casa — e quem disse que casa é sempre lugar do conforto? — no deslocamento entre Europa, África e Américas, bagunçando as fronteiras artificiais (raciais, de “gênero”, religiosas e outras) que aparecem todos os dias para separar o que deveria ficar sempre misturado — uma mistura que ganha novos significados todos os dias.

Seu nomadismo não é apenas geográfico. Peter não tem medo de trocar de continentes ou de ideias. As situações mudam, e devem mudar também as ferramentas para compreendê-las, ou mesmo para percebê-las. É preciso ter coragem para dizer que estávamos equivocados no passado, que aquela maneira antiga de ver o mundo não nos serve mais, e que chegou a hora de partir para outra, para a próxima, sem apego. Tive lição prática dessa sua estratégia saudavelmente mutante durante a defesa da minha tese de doutorado (que deu origem ao livro “O mistério do samba”), quando Peter fazia parte da banca de examinadores. Eu havia atacado um de seus textos, o clássico “Feijoada e soul food”, e pensava que isso poderia causar mal-estar, ou pelo menos debate difícil, em nosso diálogo. Para minha surpresa, ele foi logo dizendo que a crítica que eu lhe fizera era procedente, e declarou que já tinha superado aquele modo de ver as coisas.

Sua curiosidade com relação ao diferente e sua disponibilidade para mudar de visão de mundo sempre que necessário se mantêm intactas nestas sete décadas de vida — é incrível ainda hoje acompanhar sua vitalidade juvenil, depois de tantas mudanças e experiências bombásticas. Desde os primeiros momentos, literalmente: quando nasceu, os campos ingleses ao redor da maternidade estavam sendo bombardeados por aviões alemães. Sua mãe tinha saúde frágil, e Peter passou sua vida em colégios internos, tendo a educação britânica mais tradicional. Entrou para Cambridge, para ser matemático. Trocou de curso.

Teve aulas, trabalhou ou teve contato próximo com alguns dos antropólogos mais importantes daquela época: Edmund Leach, Mary Douglas (que lhe ensinou a dar aulas), Jack Goody, Roger Bastide, Michel Leiris, Pierre Rivière. Por acaso foi fazer pesquisa de doutorado na então Rodésia, onde aprendeu a língua xona. Por sorte foi adotado pela turma de Max Gluckman, que se interessava pelas relações da África com a modernidade “ocidental”, em todas suas contradições. Nesse período, teve oportunidade de conhecer Moçambique, ainda colônia portuguesa, e ficou fascinado com as diferenças entre as maneiras de se pensar as raças desenvolvidas pelas colonizações britânicas e portuguesas. Não via uma como melhor que a outra: eram surpreendentemente diferentes.

Na volta para a Inglaterra, não conseguiu mais se adaptar aos tons cinzas da vida britânica. Vivia deprimido. Foi aprender português numa aldeia perdida no norte de Portugal. Então soube que a Unicamp estava contratando novos professores e se mudou para o Brasil. Aqui estudou religiões e línguas afrobrasileiras, colaborou com as primeiras experiências de imprensa gay e se mudou para o Rio, onde foi professor no Museu Nacional e do IFCS, local em que ajudou a implantar importante (também para o Brasil) programa para estudantes de países africanos de língua portuguesa. Nesse meio tempo voltou para a África, como representante da Fundação Ford no Zimbábue e em Moçambique. Ali financiou projetos de pesquisa pioneira sobre transformações políticas e culturais locais. Recentemente, no Brasil, mergulhou de forma apaixonada no debate sobre as cotas, identificando racialismo em propostas que pretendem acabar com a discriminação por raças — vários militantes prócotas passaram a tratá-lo como inimigo, quando na verdade deveriam tê-lo amigo fundamental no combate ao racismo (é muito empobrecedor dividir o mundo entre prós e contras qualquer coisa — como ensina Peter, o melhor da antropologia é consequência da crítica contra essencialismos rasteiros).

Hoje, aposentado da universidade, é um dos principais articuladores da revista virtual “Vibrant”, que traduz textos de antropólogos brasileiros para aumentar a circulação de nossas ideias planeta afora, produzindo mais diferenças de visões do/no mundo. Ufa!

Relembrei várias dessas aventuras de Peter vendo os vídeos de sua entrevista que o Cepedoc publicou online como parte do excelente projeto “Cientistas sociais de língua portuguesa — histórias de vida”. Há várias outras entrevistas — com Gilberto Velho, Boaventura de Sousa Santos, Janet Mondlane etc. — no

Lá há também uma preciosidade: a restauração do filme “Days of rest”, que Peter dirigiu em Zâmbia, em 1969, sobre membros de uma igreja protestante que hoje chamamos de neopentecostal.
Retirado do blog Conteúdo Livre

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